Em ‘Get Back’, Peter Jackson descobre segredos que Beatles tentaram esconder há 50 anos

Documentário

POR G1

O lendário último show dos Beatles está restaurado na íntegra em 'Get Back' — Foto: Divulgação

O lendário último show dos Beatles está restaurado na íntegra em ‘Get Back’ — Foto: Divulgação

Enquanto gravavam um documentário para promover sua volta aos palcos após três anos se apresentarem aos públicos em 1969, os Beatles estavam um pouco paranoicos com os microfones espalhados pelo diretor. Para manter um pouco de privacidade, eles aumentavam o volume dos amplificadores para abafar suas conversas.

A estratégia deu certo por 50 anos. Com a estreia da série documental “The Beatles: Get Back” nesta quinta-feira (25), o diretor Peter Jackson promete trazer alguns dos momentos mais íntimos e privados em um estúdio vividos por Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr.

“Eles abafaram a conversa em 1969 e nós fomos mais espertos em 2021 – e conseguimos todas essas conversas”, diz orgulhoso o cineasta, conhecido pela trilogia “O Senhor dos Anéis”, em conversa com o g1. Assista ao vídeo acima.

“Eles cantam músicas, obviamente, mas isso não é a história. Ela é contada nas conversas que eles têm. Muitas delas, que você ouve em ‘Get Back’, são muito pessoais e íntimas, que eles não faziam ideia de que, 50 anos depois, nós conseguiríamos apagar a guitarra e ouvir essas coisas.”

Para chegar às quase 8 horas dos três episódios da série, lançados de forma individual diariamente até o sábado (27), o diretor enfrentou uma longa batalha de quatro anos de edição e restauração do material original – captados por outra pessoa, claro.

Afinal, o zeolandês de 60 anos tinha apenas 7 na época das gravações, realizadas ao longo de 22 dias em janeiro de 1969 por Michael Lindsay-Hogg para o documentário “Let it be” (1970) durante as famosas sessões “Get Back”.

Depois que o filme original não foi tão bem recebido pela crítica da época, que o considerou melancólico por associação com o fim da banda, a produção ficou cada vez mais difícil de encontrar. E as quase 60 horas de imagens e 130 horas de áudio produzidas pela equipe ficaram trancadas em um cofre da empresa fundada pelo grupo, a Apple.

Elas mostram os planos da realização de um disco ao vivo em um show televisionado, as reclamações sobre as primeiras acomodações escolhidas para o ensaio, as composições de alguns de seus grandes sucessos, a desistência do projeto original, o lendário última apresentação da banda e até a saída — e o eventual retorno — de Harrison do grupo.

Grande fã dos Fab Four, Jackson foi escolhido para restaurar o material bruto depois de seu trabalho no documentário sobre a Primeira Guerra Mundial “Eles não envelhecerão” (2018).

Na entrevista exclusiva no Brasil, o cineasta fala sobre os desafios da produção, as semelhanças do projeto com suas adaptações dos livros de J. R. R. Tolkien, momentos surpreendentes encontrados nas gravações e a tecnologia com inteligência artificial que permitiu descobrir as conversas secretas dos Beatles.

Leia a íntegra abaixo:

G1 – Você teve acesso a dezenas e dezenas de horas de gravações brutas. Para você pessoalmente, sir Peter Jackson, qual foi o aspecto mais desafiador desse projeto?

Peter Jackson – Acho que, para ser honesto, o aspecto mais desafiador foi a pura quantidade do material. Quero dizer, é difícil olhar para 60 horas de gravação e 130 horas de áudio.

Porque normalmente, quando eu gravo um filme, gravamos esse tanto, mas seguimos um roteiro. É tudo organizado. ‘Essa é a cena 27. E aqui está o roteiro. Isso é o que os atores estão falando.’

Neste a gente tinha todo esse material que não tem roteiro. Está apenas lá. ‘Oh, meu Deus. Primeiro temos que assistir a tudo. E depois provavelmente temos que assistir de novo. E então podemos começar a pensar no que fazer com isso.’

E só a edição nos tomou quatro anos. Jabez Olsen e eu. E literalmente não conseguiríamos fazer isso em dois, três anos. Foram quatro porque foi isso que levou para editar isso. Eu nunca editei filme algum por tanto tempo. Porque esse é o tempo que levou.

Mas o que foi útil, ao ver as duas vezes, foi entender que a forma de fazer isso, na minha opinião, era apenas contar a história do dia a dia das sessões ‘Get Back’.

Michael Lindsay-Hogg esteve com eles por 22 dias em janeiro de 1969. Eles tinham um plano de fazer um show ao vivo, com um disco ao vivo, e ele estava filmando. O plano dá errado, e as coisas acontecem, mas ele está gravando por 22 dias.

Então pensei em contar a história um dia de cada vez, para que a vivêssemos conforme os Beatles a viveram.

Tomei a decisão de não fazer entrevistas atuais. Não quero entrevistar o Paul, ou o Ringo, ou Michael, ou (o engenheiro de som) Glyn Johns agora. Queria apenas voltar a 1969 e fazer essa jornada com eles.

Então, quando tomei essa decisão, pensei: ‘Jabez e eu vamos passar um mês e editar o dia 1. E nem vamos nos preocupar com o resto. E então vamos seguir em frente e editar o dia 2’.

Então, meio que fizemos isso, e o resultado foi um filme de 18 horas de duração. Então pensei: ‘Ok, temos 22 dias e 18 horas de duração. Então, agora temos de ir em cada dia e dar uma encurtada’. Porque 18 horas, por mais que eu seja fã, isso é um pouco longo demais. (risos)

G1 – Essa era a minha próxima pergunta. Conforme eu assistia à prévia disponibilizada para a imprensa, fiquei com vontade de assistir aos 22 dias completos. Como fã, como você decide o que é importante para a história que quer contar?

Peter Jackson – Eu tive de ter duas personalidades. Tive de operar como um contador de histórias responsável. Eu queria que qualquer pessoa que não se interessa tanto pelos Beatles pudesse assistir a isso e ficasse engajada e eles entrassem nessa jornada com a banda.

Porque o que acontece nas sessões ‘Get Back’ é que eles planejam as coisas, elas dão errado, e eles precisam se recuperar e fazer um novo plano. Tem várias reviravoltas. É quase como se tivesse escrito um roteiro.

Então eu queria fazer isso, mas, ao mesmo tempo, como um fã dos Beatles, queria colocar todas as coisas legais ali.

Enquanto eu olhava para as coisas eu pensava: ‘Isso é algo fantástico, e, se não colocarmos isso no filme, vai voltar ao cofre da Apple e pode levar outros 50 anos até que alguém veja’.

É verdade, era o que eu estava pensando. Porque eu não sei. ‘Isso é ótimo. Eu sou um fã dos Beatles. Eu amo isso. E todos os outros fãs do mundo deveriam ver. Então isso vai pro filme.’

Eu estava equilibrando o fã de Beatles, colocando tudo o que dava, com a minha responsabilidade de contar uma narrativa e não deixar muito repetitivo. Não sei. Espero que tenha feito isso.

G1 – A sua experiência em ‘O Senhor dos Anéis’ te ajudou nesse projeto? Porque você também é um fã do livro, mas muita coisa não entrou nos filmes, e você teve de editar e escolher muita coisa, agindo mais como um contador de histórias do que como um fã. Isso ajudou?

Peter Jackson – Bem, ajuda, mas obviamente são coisas muito diferentes. Um é um livro, tinha um roteiro, e outro é um documentário que eu não gravei. Quero dizer, eu gravei ‘O Senhor dos Anéis’, mas não gravei esse. O Michael Lindsay-Hogg gravou.

Em alguns aspectos eles são muito diferentes. Mas a similaridade é que eu sou apaixonado por ambos. Faz tanta diferença se você trabalha em um projeto que ama.

Eu ia lá todo dia com o Jabez por quatro anos editando isso, e eu nunca me cansei, nunca me entediei, nunca desejei estar fazendo outra coisa. Eu amei cada dia. Mas isso é apenas porque eu amo os Beatles. Assim como eu amo Tolkien.

Se há qualquer similaridade é que estou muito feliz por estar passando pela minha carreira fazendo coisas que eu amo. Isso é muito legal.

G1 – Enquanto assistia à previa, me emocionei com um momento no qual eles estão ensaiando ‘Don’t let me down’ e me perguntei se eles estavam na verdade escrevendo a música.

Peter Jackson – Sim, sim.

G1 – Quantos momentos desse tipo estão na série?

Peter Jackson – Dúzias deles. Não pense nisso como o making of do disco ‘Let it be’. Não pense assim. A maior parte das músicas desse disco vem das sessões ‘Get Back’.

No ‘Abbey Road’ há 17 faixas. 12 delas vieram dessas sessões. Então você vai ver músicas do ‘Abbey Road’.

John Lennon cantando ‘Gimme some truth’. Temos os Beatles, Paul McCartney e John Lennon escrevendo essa música. Eu nem sabia disso. Está no disco do John.

‘All things must pass’, ‘Another day’, ‘The back seat of my car’, ‘Isn’t it a pity’. Todas músicas solo. Você tem dúzias e dúzias de músicas e vê muitas delas sendo criadas, aperfeiçoadas.

Desse jeito, se é o que você gosta – e eu concordo, amo também –, tem muita coisa que é fantástica.

G1 – Desde que você começou o processo de restauração quatro anos atrás, a tecnologia evoluiu. Vocês desenvolveram tecnologias para essa restauração. Vocês conseguiram descobrir algum momento por causa dessa tecnologia?

Peter Jackson – Na verdade, a resposta para isso está no áudio. Restauramos o filme, ele ficou ótimo, mas, deixando isso de lado, o som.

Quando isso foi filmado em 1969, muito era gravado em um palco de ensaio. Não estava sendo gravado em um cartucho com 8 faixas. Era apenas eles ensaiando. Não estavam gravando o ensaio. Então, o som foi capturado pela equipe de filmagem. Era uma fita em mono.

Os Beatles gravam em imagem de 'Get Back' — Foto: Divulgação

Os Beatles gravam em imagem de ‘Get Back’ — Foto: Divulgação

Então, não tem a mixagem e os balances e tudo mais. E Michael Lindsay-Hogg estava filmando e gravando. Ele quer conseguir conversas privadas e íntimas, e os Beatles perceberam o que ele estava fazendo.

E há essa espécie de guerra entre Michael e os Beatles, na qual eles tentam ser mais espertos que ele, ele tenta ser mais esperto que eles. Ele tenta esconder microfones em todos os lugares, e eles ficam paranóicos sobre serem gravados.

John e George são os que mais fazem isso. Se os quatro estão sentados conversando, e eles não querem que os microfones do Michael gravem, eles aumentam o volume dos amplificadores bem alto, e tocam as guitarras.

Então, eles falam, mas na fita você só ouve barulho. Você vê, mas não consegue ouvir. E isso é uma pena. Eles estão tendo uma conversa privada.

Mas o que nós fizemos com a tecnologia, com o aprendizado de máquina, é que ensinamos a um computador como é o som de uma guitarra e então falamos para ele se livrar da guitarra. ‘Apenas se livre dela.’

E isso é tudo feito com inteligência artificial no computador. E agora nós ouvimos as conversas. A guitarra se foi.

Eles abafaram a conversa em 1969 e nós fomos mais espertos em 2021 e conseguimos todas essas conversas.

Muito do filme, a história do filme é contada em conversas. Eles cantam músicas, obviamente, mas isso não é a história. Ela é contada nas conversas que eles têm. Muitas delas, que você ouve em ‘Get Back’, são muito pessoais e íntimas, que eles não faziam ideia de que, 50 anos depois, nós conseguiríamos apagar a guitarra e ouvir essas coisas.

Você vai ouvir algumas coisas bem pessoais e íntimas que eles mesmos não queriam que o Michael gravasse. Essa é uma forma na qual a tecnologia ajudou a contar a história.

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